Santo Afonso Maria de Ligório

Instrução ao povo

sobre os Preceitos do Decálogo para observá-los bem

e sobre os sacramentos para recebê-los bem

(para uso de párocos e missionários e de todos os eclesiásticos

que se empenham a ensinar a doutrina cristã)

PARTE II. Dos santos sacramentos.

Cap. V. Do Sacramento da Penitência.

§ II. Da dor.

12. A dor dos pecados é tão necessária para o perdão que, sem ela, nem mesmo Deus (pelo menos de acordo com a providência comum) pode nos perdoar. Nisi poenitentiam habueritis, omnes similiter peribitis[1]. Pode ser que alguém ao morrer seja salvo sem ter tido a ocasião de fazer exame de consciência ou de confessar os próprios pecados. Este é o caso de alguém que faça um ato de verdadeira contrição, sem que tenha tido tempo ou sacerdote para se confessar. Mas sem a dor é impossível que se salve. E este é o erro de alguns que, ao se prepararem para a confissão, se empenham apenas em recordar os seus pecados, e em nada se empenham em conceber uma verdadeira dor. Portanto, devemos constantemente pedir a Deus esta dor dos nossos pecados; e antes de ir ao confessionário devemos rezar uma Ave Maria à bem-aventurada Virgem das Dores, para que nos alcance um verdadeiro arrependimento de nossos pecados. Para que esta dor seja eficaz e, por consequência, perdoe os nossos pecados, ela deve possuir cinco condições. É necessário que ela seja:

  1. verdadeira,
  2. sobrenatural,
  3. suprema,
  4. universal
  5. e confiante.

13. Quanto à 1ª. A dor deve ser verdadeira. Isto é, que não seja apenas da boca para fora, mas também de coração. Eis o que deve ser a dor, como ensina o Concílio de Trento: Animi dolor, ac detestatio de peccato commisso, cum proposito non peccandi de cetero[2]. A alma deve conceber um verdadeiro arrependimento, um desprazer, uma amargura pelo pecado cometido, e detestá-lo e aborrecê-lo, como disse o penitente Rei Ezequias: Recogitabo tibi omnes annos meos in amaritudine animae meae[3].

14. Quanto à 2ª. A dor deve ser sobrenatural. Ou seja, uma dor que surge de uma razão sobrenatural, e não apenas natural. Um motivo natural seria, por exemplo, se a pessoa se arrependesse de seu pecado por causar danos à sua saúde, aos seus bens ou à sua honra. Este tipo de arrependimento de nada serve. A razão da dor deve ser, portanto, sobrenatural: devemos nos arrepender do pecado por causa de sua feiura [revelada por Deus] ou por ele ofender a infinita bondade de Deus, ou por nos fazer merecer o inferno ou perder o céu. Explicaremos mais abaixo que, dependendo do caso, esta dor pode ser perfeita (contrição) ou imperfeita (atrição).

15. Quanto à 3ª. A dor deve ser suprema (suma). Quando dizemos suprema não quer dizer que a dor deva ser acompanhada de lágrimas e de sensibilidade positiva. Basta que esta dor seja um ato apreciativo da vontade, ou seja, que a pessoa deteste mais o fato de ter ofendido a Deus do que qualquer outro mal que pudesse lhe acontecer. É importante que as almas temorosas que costumam se inquietar saibam o seguinte: se não sentem sensivelmente a dor dos seus pecados, basta que se arrependam com a vontade, ou seja, que queiram se arrepender, preferindo perder tudo do que ofender a Deus. Santa Teresa deu uma bela regra para saber se uma alma tem verdadeira dor pelos seus pecados: se a alma tem um propósito verdadeiro, e preferiria antes tudo perder que perder a graça de Deus, então se alegre! Porque então ela tem uma verdadeira dor de seus pecados.

16. Quanto à 4ª. A dor deve ser universal de todas as ofensas graves feitas a Deus, de tal forma que não pode haver nenhum pecado mortal que não seja detestado mais do que todos os outros males. Eu disse pecado mortal, porque, quanto aos pecados veniais, não é necessário que haja o arrependimento de todos eles para que um pecado venial seja perdoado. Já que um pecado venial pode ser perdoado sem que outro o seja, basta que desse pecado haja verdadeira dor. Aliás, qualquer tipo de pecado, seja mortal seja venial, jamais será perdoado por Deus se não houver verdadeiro arrependimento. Aqueles que, quando se confessam, confessam apenas os pecados veniais, mas sem que haja dor, se deem conta de que suas confissões são nulas. Sendo assim, caso desejem receber a absolvição, devem sentir a dor de pelo menos um de seus pecados veniais confessados. Ou então, tragam para a confissão uma matéria certa, confessando algum pecado de sua vida passada, pelo qual tenham verdadeira dor.

17. Isto no que diz respeito aos pecados veniais; mas, quanto aos mortais, é necessário haver verdadeiro arrependimento e verdadeiro propósito com relação a todos; caso contrário, nenhum pecado será perdoado. A razão é porque nenhum pecado mortal é perdoado sem a infusão da graça na alma; mas esta graça não pode coexistir com o pecado mortal. Sendo assim, não pode ser perdoado um pecado grave de uma pessoa se todos os outros pecados graves não forem perdoados. Conta-se que o mártir São Sebastião curava enfermidades com o sinal da cruz. Um dia, o santo foi visitar Croácio, que estava doente, e prometeu-lhe saúde, desde que queimasse os ídolos que guardava. Ele queimou quase todos os ídolos, mas reservou um que lhe era mais caro; e, portanto, não se curou. Ele então foi reclamar ao santo; mas o santo o advertiu de que de nada adiantava ter queimado os outros ídolos, se ele pretendia guardar aquele último. De forma análoga, não adianta a uma alma detestar alguns pecados graves se não detesta a todos eles. Não é necessário, porém, que aqueles que cometeram mais pecados mortais detestem estes pecados um por um; basta detestá-los a todos com uma dor geral, como graves ofensas a Deus: e, assim fazendo, embora possa haver alguns pecados esquecidos, estes também serão perdoados.

18. Quanto à 5ª. A dor deve ser confiante, isto é, unida à esperança de ser perdoado. Caso contrário, seria uma dor semelhante à dos condenados que também se arrependem de seus pecados (não enquanto ofensas a Deus, mas apenas porque eles são a causa de suas dores), mas se arrependem sem esperança de perdão. Judas também lamentou sua traição: Peccavi tradens sanguinem iustum[4]. Mas porque ele não confiou no perdão, morreu em desespero pendurado em uma árvore. Mesmo Caim reconheceu o seu pecado depois de ter matado seu irmão Abel, mas desesperou do perdão dizendo: Maius est peccatum meum, quam ut veniam merear[5]. E, portanto, ele morreu condenado. Diz São Francisco de Sales: a dor dos verdadeiros penitentes é uma dor cheia de paz e consolação, porque o verdadeiro penitente, quanto mais se arrepende de ter ofendido a Deus, tanto mais confia no perdão e tanto mais cresce a consolação. Por isso dizia São Bernardo: Domine, si tam dulce est flere pro te, quid erit gaudere de te?[6]

19. Sendo assim, são estas as características da dor de que dispõe o penitente para obter o perdão de Deus na confissão. Mas, além disso, é necessário saber que essa dor pode ser de dois tipos: perfeita e imperfeita. A dor perfeita é chamada de dor de contrição; e a dor imperfeita, de atrição. A contrição é aquela dor que se tem do pecado, pelo motivo de com ele termos ofendido a bondade de Deus. Dizem os teólogos que a contrição é um ato formal de perfeito amor a Deus; já que, quem tem contrição está sendo movido pelo amor que o leva à bondade de Deus, ao arrepender-se de tê-lo ofendido. Sendo assim, é muito útil para quem deseja fazer um ato de contrição que primeiro faça um ato de amor para com Deus, dizendo assim:

Meu Deus, porque vós sois bondade infinita, eu vos amo acima de todas as coisas: e porque vos amo, detesto vos ter ofendido mais do que detesto todos os outros males.

20. Por outro lado, a dor da atrição é aquela dor que se tem de ter ofendido a Deus por um motivo menos perfeito, como pela feiura do pecado ou pelo dano que o pecado nos causou, ou seja, pelo inferno adquirido ou pelo paraíso perdido. De modo que a contrição é a dor do pecado pela injúria feita a Deus; e a atrição, a dor da ofensa feita a Deus por causa mal que ela nos causou.

21. Com a contrição, recebe-se imediatamente a graça, antes mesmo de se receber o sacramento com a absolvição do confessor, desde que o penitente tenha intenção, pelo menos implícita, de receber o sacramento se confessando. Assim, temos no Concílio de Trento: Docet (S. Synodus), etsi contritionem hanc aliquando caritate perfectam esse contingat, hominemque Deo reconciliare, priusquam hoc sacramentum actu suscipiatur etc.[7]. Por outro lado, com a atrição só se recebe a graça quando se recebe realmente a absolvição, como diz o próprio conselho: Quamvis (attritio) sine sacramento poenitentiae per se ad iustificationem perducere peccatorem nequeat, tamen eum ad Dei gratiam in sacramento poenitentiae impetrandam disponit[8]. Este disponit deve ser interpretado (como explica o Padre Gonet e comunissimamente tantos outros) como uma disposição próxima, com a qual se recebe a graça no sacramento. Esta disposição não deve ser entendida como disposição remota. Embora a atrição, mesmo fora do sacramento, seja uma boa ação e prepare a alma para a graça, o Concílio refere-se aqui à disposição que a atrição realiza no sacramento (in sacramento poenitentiae); por isso, deve-se interpretar necessariamente como sendo uma disposição próxima.

22. Aqui surge a questão de saber se, para receber a absolvição dos pecados, é necessário que a atrição seja associada ao amor incoado, isto é, a um começo de amor. Não há dúvida de que esse princípio de amor é necessário para a justificação; já que o próprio Concílio ensina que uma das disposições para que os pecadores sejam justificados é que eles comecem a amar a Deus: Deum tanquam iustitiae fontem diligere incipiunt[9].  A dúvida está em como deve ser esse princípio de amor. Alguns querem que seja um ato de amor predominante, ou seja, que o pecador ame a Deus acima de todas as coisas. Mas não é correto dizer isto, porque quem ama a Deus acima de todas as coisas já o ama com amor perfeito, e o amor perfeito já perdoa e destrói o pecado. Foi condenada por Alexandre VIII a propos. 72 de Miguel Baio, que disse que o amor a Deus pode coexistir com o pecado: Caritas illa quae est plenitudo legis non semper est coniuncta cum remissione peccatorum. Ora, o que é o amor de Deus com o qual a lei chega a seu cumprimento? É precisamente o amor predominante com o qual Deus é amado acima de todas as coisas. Ensina Santo Tomás que, amando a Deus acima de todas as coisas, já cumprimos o preceito de Jesus Cristo: Diliges Dominum Deum tuum ex toto corde tuo[10]. Eis as palavras do santo: Cum mandatur quod Deum ex toto corde diligamus, datur intelligi, quod Deum super omnia debemus diligere[11]. Portanto, quem ama a Deus acima de todas as coisas não pode estar em pecado. E isso é confirmado pelo Angélico em outro lugar onde ele diz: Actus peccati mortalis contrariatur caritati, quae consistit in hoc, quod Deus diligatur super omnia. Por isto ele ensina: Caritas non potest esse cum peccato mortali[12]. Temos também vários textos da Escritura, que nos asseguram que quem ama a Deus é amado por Deus: Ego diligentes me diligo[13]. Qui autem diligit me, diligetur a Patre meo, et ego diligam eum[14]. Qui manet in caritate, in Deo manet, et Deus in eo[15]. Caritas operit multitudinem peccatorum[16].

23. Disto se segue que toda contrição (que é também um ato de caridade, como dissemos acima), mesmo que seja remissa, desde que chegue a ser uma contrição, perdoa todos os pecados graves. Daí o próprio Doutor Angélico escrever: Quantumcumque parvus sit dolor, dummodo ad contritionis rationem sufficiat, omnem culpam delet[17].

24. Dito isto, não faria sentido algum pensar que o amor incoado unido à atrição tenha de ser um amor que fosse predominante, já que um amor remisso, e não intenso, já seria amor perfeito e, portanto, não se trataria mais de atrição, mas de contrição. Portanto, se fosse necessária uma atrição deste tipo [isto é, atrição unida a um ato de amor predominante], todo pecador já iria para a confissão absolvido, e assim o sacramento da penitência não seria mais sacramento dos mortos, mas dos vivos; e a absolvição não seria mais verdadeira absolvição, mas antes uma simples declaração da absolvição já realizada, como queria Lutero. Mas, de acordo com o Concílio de Trento[18], isto não é aceitável. Portanto, não é necessário que o amor incipiente que deve estar presente na atrição seja um amor predominante. Basta apenas que seja um simples começo de amor, que é o temor dos castigos eternos. Timor Dei initium est dilectionis[19]. Assim, também a vontade de não ofender a Deus é um começo de amor. E assim também a esperança do perdão e dos bens eternos que Deus promete, como nos diz Santo Tomás: Ex hoc quod per aliquem speramus bona, incipimus ipsum diligere[20]. E, portanto, quando vamos confessar, é bom unirmos com o ato de dor o ato de esperança de sermos perdoados pelos méritos de Jesus Cristo. Como também diz o Concílio de Trento ao recordar que, com esta esperança, o penitente deve se preparar para receber de Deus a remissão de seus pecados: Fidentes Deum sibi propter Christum propitium fore[21].

25. Deve-se notar também que o medo dos castigos temporais, com os quais o Senhor, também nesta vida, castiga os pecadores não é suficiente para a dor da atrição. Porque os Doutores dizem que, uma vez que o castigo do pecado mortal é eterno, o motivo do arrependimento deve ser o castigo das penas eternas. Deve-se notar ainda que no ato de atrição não basta que o pecador apenas se arrependa por ter merecido o inferno, mas também deve se arrepender de ter ofendido a Deus pelo inferno que mereceu. Mais ainda: note-se que o Concílio diz que o ato de atrição deve ser acompanhado não somente pela esperança de perdão, mas também pela vontade de não pecar mais: Cum spe veniae excludens voluntatem peccandi[22]. Assim é que, se alguém se arrependesse de seus pecados por motivo do inferno merecido, mas com tal disposição que, se não houvesse inferno, ele não deixaria o pecado, essa dor não serviria, mas ao contrário, seria culposa por razão de sua má vontade. Eis, então, como se realiza o ato de atrição:

Meu Deus, porque com meus pecados perdi o paraíso e mereci o inferno por toda a eternidade, lamento vos ter ofendido acima de todos os outros males.

Já o ato de contrição é feito assim:

Meu Deus, porque vós sois bondade infinita vos amo acima de todas as coisas, e porque vos amo, eu lamento e eu me arrependo de todas as ofensas que vos fiz, ó Bem supremo, mais do que todos os outros males. Meu Deus, nunca mais! Quero antes morrer, do que voltar a vos ofender.

Note-se aqui que, embora a atrição por si só, como foi dito, seja suficiente para implorar a graça neste sacramento; mesmo assim, todo penitente deve, sem deixar de confessar, acrescentar ao ato de atrição o de contrição, tanto para sua maior segurança, quanto para seu maior proveito.


[1] “Se não fizerdes penitência, perecereis todos igualmente” (Lc 13, 3).

[2] “Uma dor da alma e detestação do pecado cometido, com propósito de não tornar a pecar” (DH 1676; Sess. 14, c. 4).

[3] “Repassei diante de ti pela memória todos os meus anos com amargura da minha alma” (Is 38, 15).

[4] “Pequei, entregando sangue inocente” (Mt 27, 4).

[5] “O meu pecado é grande demais, para que eu possa merecer perdão” (Gn 4, 13).

[6] “Senhor, se é tão doce chorar por ti, o que será se alegrar por ti?”

[7] “(O Santo Concílio) ensina ainda que, embora algumas vezes suceda que esta contrição seja perfeita em virtude da caridade e reconcilie com Deus antes que seja realmente recebido este santo sacramento, contudo não se deve atribuir esta reconciliação à contrição somente, independente do desejo de receber o sacramento, que aliás está contido nela” (DH 1677; Sess. 14, c. 4).

[8] “(A atrição) também é dom de Deus e moção do Espírito Santo, que na realidade ainda não habita no homem penitente, mas somente o move; e ajudado por ele, o penitente se dispõe a alcançar a amizade de Deus no sacramento da penitência (DH 1678, loc. cit.).

[9] “Começando a amá-lo como fonte de toda justiça” (DH 1526; Sess. 6, c. 6).

[10] “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração” (Mt 22, 37).

[11] “Quando manda amarmos a Deus de todo o coração, dá a entender que devemos amá-la acima de tudo” (S. Th., II-II, q. 44, a. 8, ad 2).

[12] “Todo ato de pecado mortal contraria a caridade na sua essência mesmo, consistente em amar a Deus sobre todas as coisas [...]. A caridade não pode estar com o pecado mortal” (S. Th., II-II, q. 24, a. 12).

[13] “Eu amo aos que me amam” (Pr 8, 17).

[14] “E aquele que me ama, será amado de meu Pai, e eu também o amarei” (Jo 14, 21).

[15] “Aquele que permanece na caridade, permanece em Deus e Deus nele” (1Jo 4, 16).

[16] “A caridade cobre a multidão dos pecados” (1Pe 4, 8).

[17] “Por pequena que seja a dor, contanto que seja suficiente para formar a contrição, ela destrói totalmente a culpa” (Suppl., q. 5. a. 3).

[18] DH 1709; Sess. 14, can. 9.

[19] “O temor de Deus é o princípio do amor” (Ecl 25, 16).

[20] “Pelo fato de que esperamos obter um bem por meio de alguém, começamos a amá-lo” (S. Th., I-II, q. 40, a. 7).

[21] “Confiando que Deus lhes será propício por causa de Cristo” (DH 1526; Sess. 6, c. 6).

[22] “Com a esperança do perdão excluir a vontade de pecar” (Sess. 14, c. 4).